domingo, 7 de março de 2010
Um Exemplo de Mulher
Sentadas na cama, já a noite, ensinava-me. Com terço entre os dedos, a oração ia rezando, e bem devagarinho, fazia-me repetir. Lembro de ouví-la conversando com Deus baixinho, e sempre percebia que dizia meu nome. Rezava por mim.
Recordo-me do aroma da hora do almoço. A especialidade era carne com batata, e aquele arroz bem branquinho e soltinho, que só minha avó sabia fazer. Depois da refeição, descascava a laranja, e juntas, comíamos os gominhos.
Italiana tradicional, não dispensava a soneca depois do almoço, bem como a leitura do jornal matinal.
Depois do cochilo vovó cuidava de mim, atendia meu pedidos e também solicitava-me algumas coisinhas. Ela me amava, e eu amava-a mais ainda.
A história de minha avó, Dona Maria, daria um livro, seria digna de uma bela árvore, porém só pôde ela, ser mãe. Mãe de dois filhos, criados na roça. Marido quieto, submisso ao jeitão mandão de minha avó.
Era Dona Maria quem ia para roça colher algodão. Também era ela, quem preparava o almoço da “colônia”, cuidava dos filhos e de toda casa. Meu avô, apenas obedecia. E ai dele, se não obedecesse. Dona Maria não era brava. Era correta, por isso exigia que tudo saísse certinho. E para que tudo estivesse nos conformes, bastava estar do jeito dela.
Se precisasse brigar, minha avó não relutava. Da mesma forma que se fosse necessário ajudar, era ela, a primeira a se prontificar.
Minha avó tinha sonhos. A mais velha das mulheres, com dez irmãos brancos de alhos azuis, como os seus, Dona Maria, mesmo casada e mãe de um casal de filhos, queria mais. Sabia de seu potencial. Provou a todos a sua coragem.
Aos cinquenta anos, minha avó renasceu. Quis viver uma nova vida, longe de seu berço, distante de sua terra. Deixou São Lourenço do Turvo, com “uma mão na frente e outra atrás”, como dizem por aí. Nada tinha. Mas tinha tudo. O marido que a amava, e nunca foi capaz de lhe dizer um não. Dois filhos. Diferentes um do outro, mas que sabiam o significado da palavra “família”.
Vieram pra Campinas. O dinheiro das “vaquinhas” que minha avó vendeu lá no Turvo, foi suficiente para comprar um terreno e iniciar a construção da casinha. Mãos de fada na cozinha, e também na costura. Roupas feitas com carinho auxiliavam as finanças da família.
Logo, minha avó ficou viúva. No entanto, era ciente de suas responsabilidades. Conseguiu terminar a casa, e mais tarde, proporcionar conforto aos filhos.
A avó que criou dois filhos, também educou e cuidou quatro netos.
Bonita que só ela. Educada como ninguém. Guerreira como as de filme. Essa era Dona Maria.
Os olhos cor do mar me fascinavam. Seu amor estava ali. Não escondia de ninguém.
Minha avó, mudou seu destino. Abriu mão de tudo que havia conquistado no interior. Não porque a situação estava difícil por lá, mas sim por ser a aventureira, e ter garra para mudar.
Sempre ao meu lado era minha amiga. Orientou-me. Incentivou-me. E até hoje, não tenho dúvidas que rege por mim.
Ensinava-me muitas coisas, e com passar do tempo, também lhe ensinava outras tantas. Preparava meu almoço, mas chegou um dia, que eu tive que preparar. Quando pequena vovó dava meu banho, porém com a idade que avançava, era minha vez de banhá-la. Quando bebê, Dona Maria trocou muitas de minhas fraldinhas, e inesperadamente os papéis se inverteram.
A mulher forte, bela, esbanjando saúde, certo dia confundiu-se. Não lembrava de meu nome, e logo, esquecia-se de mim. Começou a andar vagarosamente, mas não demorou, para sequer andar. Um dia ela empurrou meu carrinho. No outro, estava eu a empurrar a cadeira de rodas.
Continuava bela como antes, mas não tão forte, nem tão saudável como outrora. Ainda assim, sorria. Mesmo quando os dentes, já lhe ardiam as gengivas.
Vovó foi emagrecendo. Conseguia carregá-la no colo, como muitas vezes me carregou.
Da cama, não conseguia sair, e a comida dava-lhe na boca.
Algumas vezes, minha avó acordava lúcida, voltando a ser minha confidente. Foi exatamente num momento de lucidez, que Dona Maria recebeu a notícia do falecimento de seu filho. Vovó, não merecia tamanho sofrimento. “Nunca pensei que iria enterrar um filho”, foi a despedida. Nossos corações choraram, junto com dela, que sangrava.
Como já disse, Dona Maria era forte, e sua missão não estava cumprida. Precisávamos dela.
Houveram momentos, que sequer minha avó conseguia abria os olhos. Mesmo assim, compartilhava meus segredos, dividia minhas vitórias. Cheguei a chorar minhas derrotadas. Estava adormecida. Embora tinha certeza de que estava me ouvindo, e inexplicavelmente me aconselhava.
Ela sempre estava ali. Meu espelho, meu exemplo de mulher. Vê-la me dava força. Seu sorriso estimulava-me. Enquanto seu olhar alimentava-me.
Com ela aprendi a ter respeito. Foi ela quem ensinou-me a amar, a perdoar e sempre, ajudar. Vovó deixou-me, atendendo-me o chamado lá do céu. Sem o meu exemplo de mulher, tive que tornar-me uma.
Como Dona Maria nunca serei. Dera eu ser metade da mulher que minha avó foi. Realizar um terço do que ela concretizou. Ter a coragem que tanto esbanjou.
À minha avó só posso agradecer. Por ela um único sentimento posso sentir: saudades. Muitas saudades!
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